segunda-feira, 23 de junho de 2008

Escola Soviética de Montagem - 2

A burocratização da arte

No mesmo dia da estréia de Outubro, em Moscou, 7 de novembro de 1927, ocorria também ali a última manifestação da Oposição Unificada de Esquerda, derradeiro vestígio da democracia no interior do Estado Soviético.

O filme foi odiado pelos burocratas, rejeitado pelo público e criticado pela intelectualidade russa. A linguagem era ainda mais complexa que a de seus filmes anteriores e, ao Partido, não havia sido dado o lugar que a burocracia desejava. A presença das massas era forte, mas não causava o impacto de antes. Eisenstein não desejava fazer um filme puramente propagandístico, mas já não dispunha da liberdade de antes. Ficou no meio do caminho ... Seria ele uma espécie de Michelet da cinematografia russa?


Outubro (27)


Outubro é uma película polêmica que suscita muitas especulações. A opção por uma linguagem tão complexa seria gratuita? Poderia Eisenstein estar tentando encontrar uma fórmula na qual sua mensagem não fosse captada pela "sensibilidade" artística dos burocratas? Por que Stalin não se encontra nele presente? Essa ausência não significaria uma espécie de oposição ao poder pessoal de Stalin? E quanto à representação da figura de Lenin? Estaria ele dando início ao culto a sua personalidade, tão útil aos planos políticos de Stalin?

Algumas dessas questões podem ser interpretadas através da análise do momento histórico da União Soviética naquele momento. Stalin se encontrava no poder, mas sua ditadura pessoal ainda não havia sido consolidada. Havia muita oposição interna à sua política e os principais participantes do movimento de 1917 ainda estavam vivos e atuavam na vida política da Rússia. Stalin agia, mas com limites. A falsificação da história, que o colocaria como o principal herói da Revolução, ao lado de Lenin, não havia sido iniciada. O extermínio em massa da velha guarda bolchevique iria ocorrer somente a partir de 1934. Além disso, Stalin não era ainda uma figura política popular, reconhecida nacionalmente. Era necessário primeiro reforçar seu poder e construir aos poucos sua imagem, projetando-se na figura de Lenin. Após sua morte, Lenin havia sido transformado no grande herói da nação, no "Deus absoluto da Revolução". A nova política do Partido precisava de um herói para ser apresentado às massas. Mas só depois de muito tempo é que Stalin estaria em condições de assumir a condição de "pai do povos", sobrepondo-se à imagem de Lenin.


O Velho e o Novo / A Linha Geral (30)

Não obstante toda a pressão do Partido e a posição contrária da crítica, Outubro é uma película com muitos aspectos positivos. O espírito do internacionalismo socialista, ponto crucial nas discussões da época e tão combatido por Stalin, está presente em toda a obra23. O papel das massas ainda é apresentado como essencial para o processo revolucionário. Em termos estéticos, Outubro é um filme muito bom, ainda que seja inferior a Potemkin.

Após concluir os trabalhos de Outubro, Eisenstein retomou a produção de O novo e o velho, mas encontrou muitas dificuldades para finalizá-lo. O Partido já dava os passos iniciais em direção às coletivizações forçadas das terras. O roteiro original do filme teve que ser modificado, passando a se chamar A linha geral, de acordo com a "nova linha" adotada pelo Estado. Mesmo assim, o filme não agradou aos burocratas. Eisenstein continuava utilizando a montagem intelectual, elevando, cada vez mais, a complexidade de sua linguagem. Após a estréia do filme e a reação provocada nas esferas do poder, Eisenstein foi obrigado a se retratar e a assumir publicamente os "erros" que havia cometido. A linha geral foi o último filme do diretor, cuja temática foi escolhida livremente. Daí em diante, todos os seus filmes seriam imposições do Partido.


Desenho da série: O destino do peão revoltado


Em 1930, realizou uma viagem à Europa e à América com o objetivo de "estudar o cinema sonoro". Na verdade, este não passava de um pretexto oficial para escapar das pressões políticas a que estava sendo submetido. Após algum tempo na Europa, dirigiu-se aos Estados Unidos com a missão de realizar um filme para a Paramount, intitulado de Uma tragédia americana. No entanto, seu roteiro foi sumariamente recusado, porquanto "não se adequava à realidade do cinema americano". Foi então convidado por um político "progressista" americano, candidato ao governo da Califórnia, a realizar um filme no México, que resgataria a história deste país das suas origens até à atualidade. Quando estava finalizando as filmagens, Stalin exigiu o seu retorno à URSS e conseguiu, através de manobras políticas, que o patrocinador do projeto, Upton Sinclair, não o levasse adiante. Eisenstein nem pôde ter acesso aos filmes revelados. Acreditando que o Ocidente não estava ainda preparado para o tipo de arte que se propunha a fazer, Eisenstein retornou ao seu país para viver um período bastante difícil de sua vida, tanto do ponto de vista pessoal como profissional. Teve muitos problemas com a administração da Indústria Cinematográfica, controlada por Boris Choumiatsky. Em função do prolongamento de sua viagem, recebeu uma pena de sete anos, nos quais não poderia escolher os trabalhos que iria desenvolver. Eisenstein optou por concentrar-se nos seus estudos teóricos e no trabalho enquanto docente. Não levava uma vida social ativa porque acreditava que, dessa forma, estaria demonstrando sua desaprovação para com a situação política do país naquele momento. Por não aceitar os convites de inaugurações e de homenagens para qual era convidado a participar, era visto como um "esnobe" e era excluído do meio social da intelectualidade oficial. Nesses anos, em que foi duramente perseguido, sofreu intensamente de problemas nervosos, principalmente de depressão.


Eisenstein


Em 1937, recebeu uma nova incumbência do Partido, uma encomenda pessoal de Stalin: realizar um outro filme sobre as coletivizações das terras. O roteiro no qual Eisenstein começou a trabalhar girava em torno do drama de um kulack que mata o filho porque este tentava implantar o sistema de coletivização das terras na pequena aldeia de camponeses em que habitava. As gravações de O Prado de Bejin foram interditadas, sob a argumentação de que o filme não se enquadrava nos princípios do realismo socialista. Os autores do roteiro foram presos como "inimigos do povo" e mandados para o Gulag sem direito a julgamento. Eisenstein foi novamente obrigado a se retratar, como se pode deduzir da citação que se segue:

Sinto ardentemente a necessidade profunda de corrigir totalmente os erros do meu ponto de vista, de enraizar um novo ser em mim, e a necessidade do domínio completo do Bolchevismo, de que falou o camarada Stalin durante essa sessão.

Imediatamente depois, Stalin lhe fazia um outro convite: realizar seu primeiro filme sonoro, cujo tema seria a história do combate entre russos e teutônicos (alemães) no século XIII. Essa luta havia sido ganha pela Rússia, durante a Batalha de Peipos, devido à brilhante liderança do "grande capitão" Alexander Nevsky.


Alexander Nevsky (38)


Em meados dos anos trinta, Stalin havia travado uma aliança anti fascista com a França e a Inglaterra. A guerra com a Alemanha nazista era um perigo iminente. Em 1938, o Exército Vermelho estava completamente desorganizado depois do extermínio de quase todo o primeiro e segundo escalões. A ameaça nazista tornava necessária a criação de uma atmosfera patriótica na população, saturada pelo terror stalinista.

Para não correr o risco de um nova decepção com seu grande cineasta, Stalin se incumbiu de "indicar" pessoalmente os assistentes com os quais Eisenstein deveria trabalhar no seu novo filme: como co-autor, Pavlenko e como co-diretor, Vassiliev, ambos cineastas de sua "confiança". Além disso, durante todo o processo de produção (elaboração do roteiro, filmagens, montagem), Eisenstein foi acompanhado por comissários políticos que tinham a tarefa de "orientá-lo" no sentido de não cometer deslizes. O resultado foi "excepcional": Alexander Nevsky foi muito elogiado pela crítica e pelos burocratas. Em conseqüência do sucesso do filme, Eisenstein recebeu diversas homenagens, prêmios e títulos: a Ordem de Lenin, o título de Doutor em Artes e o Grande Prêmio Stalin.

Alexander Nevsky tem um estilo muito diferente dos filmes anteriores de Eisenstein. Foi concebido como uma ópera cinematográfica, musicada por Prokofiev. O papel das massas foi relegado a segundo plano, em nome da atuação do grande herói — Nevsky. Sadoul observa que

Nevsky representou uma virada decisiva na obra de Eisenstein, que passou das massas tomadas como heróis para heróis de tragédia, bem caracterizados e transfigurados por sua missão histórica27.

A mesma observação é feita por Furhammar e Isaksson:

Durante a era Stalin, a massa foi tornada anônima até que se tornou virtualmente um pano de fundo frente ao qual atuava o herói positivo.

O internacionalismo proletário cedeu lugar ao patriotismo. O espírito revolucionário se esvaneceu. Isso pode ser comprovado nas próprias palavras de Eisenstein: "Nosso tema era o patriotismo!"


Alexander Nevsky (38)


O objetivo de Stalin com Nevsky era produzir um clima de patriotismo na população para o caso de invasão alemã e, além disso, mostrar como as lutas internas impediam a construção de um Estado forte, justificando assim todos os abusos que havia cometido. Os cavaleiros teutônicos, adversários russos, foram representados como verdadeiros jovens hitleristas: cruéis, desumanos, bárbaros. Até mesmo os símbolos dos dois exércitos foram colocados em paralelo. A cruz do elmo do cavaleiro teutônico lembrava claramente a suástica nazista, assim como o seu capacete.

No entanto, o filme só pôde ser lançado três anos depois de sua finalização. Em agosto de 1938, Stalin assinava com Hitler o Pacto Germânico-Soviético. De inimigos, os nazistas se transformaram, repentinamente, em aliados soviéticos. Eisenstein foi obrigado a fazer uma saudação pelo rádio do Comintern a seu "companheiro cultural", Hitler, grande admirador de sua obra. A situação se tornava cada vez mais insuportável!


Ivan, o Terrível (44,48)

Em 1939, ao tentar realizar um filme sobre a construção do canal de Fergana, foi imediatamente obrigado a paralisar os trabalhos. Indignado, Eisenstein tentava, num ato de desespero, ridicularizar a figura de Stalin, realizando um paralelo entre sua personalidade política e a de um dos personagens do filme: Tarmelão, um tirano impiedoso e sem escrúpulos. Após a dura reação do Partido, em meio a diversas crises nervosas, chegou a pensar em suicídio. Foi dissuadido por sua esposa, Pera Attacheva.

Em 1941, Stalin encomenda um outro filme a Eisenstein. Deveria ser levada às telas a história de Ivan, aquele que havia sido um dos "fundadores da Rússia". Ivan, durante sua vida política, havia empreendido lutas sucessivas para transformar a Rússia numa grande potência, saindo vitorioso.


Ivan, o Terrível (44)

A historiografia da época, inclusive a "marxista", apresentava Ivan como uma figura negativa, um verdadeiro tirano. Nada disso foi levado em consideração.

O projeto de Ivan, o Terrível previa a realização de três filmes que tratariam cada um de uma etapa específica da vida do czar. A primeira parte ficou logo concluída e transformou-se imediatamente em um grande sucesso. Stalin ficou muito satisfeito e Eisenstein foi consagrado com o Grande Prêmio de Estado. Porém, a mesma sorte não obteve a segunda parte, finalizada em 1946. Nesta, Eisenstein apresentava Ivan como um louco assassino, como um paranóico que vivia a manipular o poder em proveito próprio.


Ivan, o Terrível


A identificação do filme com o presente era tão grande, que Eisenstein não hesitou em se auto-retratar. Ele projetava sua angústia e seu desespero frente ao regime stalinista na humilhante relação dos personagens Ivan (Stalin) e Wladimir (Eisenstein).

Após concluir a segunda parte de Ivan, o Terrível, Eisenstein sofreu uma ataque cardíaco. Ao se recuperar, foi "convidado" a comparecer a uma audiência privada com Stalin. Nessa conversa, ficou decidido que refaria a segunda parte do filme, antes de dar início à terceira e que depois dirigiria um grandioso projeto : a produção de Cáucaso, Moscou, Vitória. Neste filme, Eisenstein contaria a trajetória pessoal e política de Stalin. Mas seu estado de saúde não permite que ele prossiga. Em 11 de fevereiro de 1948, Eisenstein morre sem ter tido tempo de concluir "seus" últimos projetos. Com sua morte, a exibição de seus primeiros filmes foi proibida, assim como o ensinamento de suas teorias.


Ivan, o Terrível


A vida e a obra de Sergei Eisenstein constituem-se em testemunhos da evolução política da Rússia revolucionária e da posterior burocratização do Estado Soviético. Seus filmes são um dos maiores documentos dessa trágica história e pontuam claramente as modificações introduzidas através de cada conjuntura. Eles refletem uma busca quase que desesperada do diretor de influir no curso da história e, mais ainda, são exemplos singulares de como a história pode condicionar o cinema.

Eisenstein nunca rompeu abertamente com o regime. Nunca teceu, publicamente, críticas a Stalin. Poderia ter permanecido no Ocidente no momento de sua viagem à Europa e à América (a única consentida pelo Partido), mas não o fez. Poderia ter-se suicidado em protesto, como muitos o fizeram. Mas não o fez. Sem dúvida, teve suas razões. No entanto, sua "conivência", como afirmam muitos, não foi absoluta. Não obstante todas as "concessões", poucos artistas tiveram a coragem de realizar, numa conjuntura como aquela, uma obra como Ivan, o Terrível (segunda parte). E o que nos impressiona, a nós historiadores, é que ele não tenha sido considerado inimigo do povo, enviado aos campos da Sibéria ou simplesmente assassinado. Stalin, como em poucos momentos de sua história, compreendeu a importância de manter, "ao seu lado", um cineasta com o valor de Eisenstein.


1984 (84)


As relações dos cineastas com o Estado nos regimes ditatoriais é um ponto fundamental à compreensão da relação cinema-história. Elas não podem ser analisadas através de ótica simplista, superficial e maniqueísta. Não se trata de julgar o artista, de considerá-lo herói ou vilão, stalinista ou não stalinista, mas sim de compreender o fenômeno artístico de uma perspectiva global, levando-se em consideração todas as suas contradições. Um dos que melhor captou a dramaticidade da situação do artista e do papel da arte — ele, ao mesmo tempo artista e revolucionário — foi George Orwell. Foi ele que, a respeito da União Soviética, afirmou que

... numa sociedade como essa, a condição normal do homem é aprender a falar e a pensar com duplo sentido. Tal condição gera inevitavelmente um conflito irreconciliável em todas as esferas, sobretudo a artística. O artista que vive sob a tirania e a censura tem que fazer a verdade transparecer por meios de imagens artísticas e de alegorias metafóricas, de recorrer a meias palavras e àquilo que os russos chamam de "inoskazanie" (nas entrelinhas).

George Orwell


Orwell, não por acaso, escreveu A Revolução dos Bichos, 1984 e Homenagem à Catalunha. Neste último, presta não somente uma homenagem à Espanha revolucionária, mas também exibe a tragédia da política stalinista na Guerra Civil Espanhola. Traduzindo de modo sintético a realidade dos anos trinta, afirmou que "aquele que domina o presente domina o passado", sem esquecer da idéia de que apreender e explicar o passado é condição indispensável para se influenciar o futuro. Talvez se Eisenstein tivesse lido Orwell, pelo menos teria encontrado consolo na sua obra. Mesmo sem tê-lo feito, é inegável que da obra deste cineasta, que queria dotar o povo — que para ele se constituía no demiurgo da história — de uma verdadeira consciência, brota a própria história. Portanto, nada mais justo que, no ano do centenário da sétima arte, prestarmos a nossa homenagem a ele que foi um dos seus maiores mestres.


A Revolução dos Bichos (99)


continua...